Sou do tempo que se abria a janela do carro para jogar lixo na rua. A gente não usava filtro solar e ia torrar no sol sem se importar com as queimaduras na pele e nunca tinha ouvido falar em melanoma. Mulher tinha que casar virgem e se alguém desconfiasse que ela já tinha se deitado com o namorado ficava mal falada. Nem de branco casava mais. Uma vez perguntei para minha mãe porque a noiva estava de azul e ela me respondeu, com a maior naturalidade, que era porque já tinha dormido com o marido antes do casamento. Fiquei sem entender nada.
Mas o homem podia transar antes do casamento. Aliás, quanto mais vivido melhor. E o mais absurdo era que o homem podia matar em legítima defesa da honra ou abandonar a mulher caso levasse um chifre. Tudo era aceitável e natural. Se a mulher apanhasse era porque tinha feito alguma coisa para merecer uns tapas, e por aí vai. Meu tio, quando desquitou, falou mal da ex anos a fio. E ele era um chato.
Também se contava piada de preto, de judeu, de português, de bicha, de loira, de gordo e todo mundo ria e repassava. No carnaval a gente cantava Maria sapatão, nega do cabelo duro e cabeleira do Zezé na maior descontração. Tudo supernormal.
Nessa época poucas mulheres trabalhavam fora. Mas as que trabalhavam ainda tinham que dar conta da casa e dos filhos sozinhas, porque homem não fazia nada não. Imagine se o marido ia lavar louça, tirar roupa do varal ou dar banho nas crianças?
As rodas de conversas eram sempre as mesmas: as mulheres trocavam receitas de bolo e dos afazeres domésticos. E os homens fumavam e falavam de futebol. Mulher que fumava era moderna demais para alguns. Fumar era chique.
Não tínhamos muita informação chegando. Telefone era raro e muito caro. Caro ao ponto de ter que marcar dia e hora para falar com alguém que estivesse em outra cidade. Ligar para outro país então, nem pensar. Uma fortuna! Melhor ir ao correio e esperar trinta dias pela resposta das cartas enviadas.
Festinhas em casa só tinham hora para começar. Lembro de umas mães folgadas que iam buscar os filhos bem tarde, talvez querendo aproveitar ao máximo o tempo livre. E a gente não falava nada. Presentes expostos em cima da cama, garrafa de refrigerante encapadas com o motivo da festa, bolo confeitado, brigadeiro colorido, chapeuzinho e língua de sogra. Prato chique era estrogonofe e coquetel de camarão.
Ir ao aeroporto era um evento. Eu gostava de ficar no terraço aberto em Congonhas vendo avião subir e descer. Aquelas hélices girando e as pessoas milionárias, sim para mim eram todos milionários, carregando suas malas enquanto embarcavam para algum lugar fantástico.
E domingo dia de missa para muitos. No meu caso, de Federação Espírita.
Esse tempo de costumes estranhos existiu de verdade.
Mas o tempo da gente é hoje.
E hoje não jogo mais lixo pela janela do carro. Nem em lugar algum que não seja a lixeira reciclável. Separo o lixo, faço compostagem e não misturo plástico, vidro e papel. Também não vou à praia sem um bom protetor solar que cubram as mil pintinhas que carrego nos ombros. Morro de medo de melanoma.
Quando me casei de branco não era mais virgem. Tenho um casal de filhos e conversamos abertamente sobre a vida sexual deles.
Meu filho faz uma faxina melhor que a minha. E minha filha sabe trocar um chuveiro num piscar de olhos. Ela e eu nos falamos em longas chamadas de vídeo todos os dias, já que ela mora a um oceano de distância num daqueles mundos fantásticos que eu imaginava jamais conhecer.
Aquelas piadas e marchinhas? Nunca mais. Fico pensando como eu ria tanto sem me importar com a dor do outro.
Tampouco fumei. Acho brega, cafona e anti higiênico. Sou divorciada faz anos e melhor amiga do meu ex marido. Abandonei a religião. Vou a festas com hora para acabar e ainda tenho que pagar minha parte da conta. Posso comer estrogonofe às segundas feiras e quando saio com as amigas falamos de tudo, menos de receita de bolo.
Já perdi a conta de quantas vezes andei de avião, dirigi um carro ou fui sozinha ao cinema.
Aquela realidade da minha infância não existe mais. Foram muitas mudanças de comportamento. Reaprendi a me relacionar com as pessoas, com o planeta e os animais. Virei vegetariana, crio cachorros, convivo com todo tipo de gente e uso a escrita para tentar mudar o mundo, mesmo que meu mundo seja restrito à poucas pessoas. Mas faço desse ofício uma ferramenta de transformação para que daqui a alguns anos as mudanças sejam maiores e melhores para todos.
O mundo gira, roda, capota, transforma e ensina.
(stelladedomenico@gmail.com)
Imagem do artista Ivan Cruz.